segunda-feira, 16 de março de 2009

O MITO DA CAVERNA

O texto abaixo foi retirado do Livro VII d'A República de Platão. As falas em primeira pessoa são de Sócrates, enquanto as demais são de Glauco e Adimanto, irmãos de Platão.

- Depois disso, continuei, compara nossa natureza, conforme seja ou não educada, com a seguinte situação: imagina homens em uma morada subterrânea em forma de caverna, provida de uma única entrada com vista para a luz em toda a sua largura. Encontram-se nesse lugar, desde pequenos, pernas e pescoços amarrados com cadeias, de forma que são forçados a ali permanecer e a olhar apenas para a frente, impossibilitados, como se acham, pelas cadeias, de virar a cabeça. A luz de um fogo aceso a grande distância brilha no alto e por trás deles; entre os prisioneiros e o foco de luz há um caminho que passa por cima, ao longo do qual imagina agora um murozinho, à maneira do tabique que os pelotiqueiros levantam entre eles e o público e por cima do qual executam suas habilidades.

- Figuro tudo isso, respondeu.

- Observa, então, ao comprido desse murozinho homens a carregar toda a sorte de utensílios que ultrapassam a altura do muro, e também estátuas e figuras de animais, de pedra ou de madeira, bem como objetos da mais variada espécie. Como é natural, desses carregadores uns conversam e outros se mantêm calados.

- Imagens muito estranhas, disse, como também os prisioneiros de que falas.

- Parecem-se conosco, respondi. Para começar, achas mesmo que em semelhante situação Poderiam ver deles próprios e dos vizinhos alguma coisa além da sombra projetada pelo fogo, na parede da caverna que lhes fica em frente?

- De que jeito, perguntou, se a vida inteira não conseguem mexer a cabeça?

- E com relação aos objetos transportados, não acontecerá a mesma coisa?

- Como não?

- Logo, se fossem capazes de conversar, não acreditas que pensariam estar designando pelo Nome certo tudo o que vêem?

- Necessariamente.

- E se no fundo da prisão se fizesse também ouvir um eco? Sempre que falasse alguma das estátuas, não achas que eles só poderiam atribuir a voz às sombras em desfile?

- Sim, por Zeus! exclamou.

- De qualquer forma, continuei, para semelhante gente a verdade consistiria apenas na sombra dos objetos fabricados.

- É mais do que certo, respondeu.

- Considera agora, lhe disse, quais seriam as conseqüências da libertação desses homens, depois de curados de suas cadeias e imaginações, se as coisas se passassem do seguinte modo: vindo a ser um deles libertado e obrigado imediatamente a levantar-se, a virar o pescoço, andar e olhar na direção da luz, não apenas tudo isso lhe causaria dor, como também o deslumbramento o
impediria de ver os objetos cujas sombras até então ele enxergava. Como achas que responderia a quem lhe afirmasse que tudo o que ele vira até ali não passava de brinquedo e que somente agora, por estar mais próxima da realidade, e ter o rosto voltado para o que é mais real é que ele via com maior exatidão; e também se o interlocutor lhe mostrasse os objetos, à medida que fossem desfilando, e o obrigasse, à custa de perguntas, a designa-los pelos nomes? Não te parecesse que ficaria atrapalhado e imaginaria ser mais verdadeiro tudo o que ele vira até então do que quanto naquele instante lhe mostravam?

- Muito mais verdadeiro, respondeu.

- E no caso de o forçarem a olhar para a luz, não sentiria dor nos olhos e não correria para junto das coisas que lhe era possível contemplar, certo de serem todas elas mais claras do que as que lhe então apresentavam?

- Isso mesmo, disse.

- E agora, perguntei; se o arrastarem à força pela rampa rude e empinada e ao o largassem enquanto não houvessem alcançado a luz do Sol, não te parece que sofreria bastante e se revoltaria por ver-se tratado daquele modo? E depois de estar no claro, não ficaria com a vista
ofuscada, sem enxergar nada do que lhe fosse, então, indicado como verdadeiro?

- De fato, respondeu; pelo menos no começo.

- Precisaria, creio, habituar-se para poder contemplar o mundo superior. De início, perceberia mais facilmente as sombras; ao depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidos na água; por último, os objetos e, no rasto deles, o que se encontra no céu e o próprio céu, porém sempre enxergando com mais facilidade durante a noite, à luz da Lua e das estrelas, do que de dia ao Sol com todo o seu fulgor.

- Não há dúvida.

- Finalmente, segundo penso, também o Sol, não na água ou sua imagem refletida em qualquer parte, mas no lugar certo, que ele poderia ver e contemplar tal como é mesmo.

- Necessariamente, disse.

- De raciocínio em raciocínio, chegaria à conclusão de que o Sol é que produz as estações e tudo dirige no espaço Visível, e que, de algum modo, é a causa do que ele e seus companheiros estavam habituados a distinguir.

- É evidente, respondeu, que depois de tudo, ele concluiria
dessa maneira.

- E então? Quando se lembrasse de sua primitiva morada, da sabedoria lá reinante e dos companheiros da prisão: não te parece que se felicitaria pela mudança e lastimaria a sorte deles todos?

- Sem dúvida

- E as honrarias e elogios distribuídos entre eles mesmos, os prêmios para quem percebesse com mais nitidez as imagens em desfile e se lembrasse com exatidão do que costumava aparecer em primeiro lugar, ou por último, ou concomitantemente, e que, por isso, ficasse em condições de prever o que iria dar-se: acreditas que semelhante indivíduo tivesse saudades do outro tempo ou invejasse os que entre eles fossem alvo de distinções ou fizessem parte do governo? Ou como ele se passaria aquilo de Homero:

“Pois preferiria viver empregado em trabalhos do campo,
sob um senhor sem recursos,”

E vir a sofrer seja o que for, a voltar para semelhantes ilusões e viver a antiga vida?

- É também o que eu penso, respondeu; agüentaria tudo, para não voltar a viver daquele jeito.

- Considera também o seguinte, lhe falei: se esse indivíduo baixasse de novo para ir sentar-se em seu antigo lugar, não ficaria com os olhos obnubilados pelas trevas, por vir da luz do sol assim tão de repente?

- Sem dúvida, respondeu.

- E se tivesse de competir outra vez a respeito das sombras com aqueles eternos prisioneiros, quando ainda se ressentisse da fraqueza da vista, por não se ter habituado com o escuro – o que não exigiria pouco tempo – não se tornaria objeto de galhofa dos outros e não diriam estes que o passeio lá por cima lhe estragara a vista e que não valia a pena sequer tentar aquela subida? E se por ventura ele procurassse liberta-los e conduzi-los para cima, caso fosse possível aos outros fazer uso das mãos e mata-lo, não lhe tirariam a vida?

- Com toda a certeza, respondeu

PLATÃO, A República, tradução de Carlos Alberto Nunes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário